beats, samples e farofa: o que ouvi de melhor em 2022

3 de janeiro de 2023 em Música

[META] ao finalizar o ano de 2021 fiquei devendo ao público o meu já tradicional texto em que falo meia dúzia de bobagem sobre meia dúzia de álbuns. esta ausência gerou uma onda de protestos em várias regiões do globo que culminou em rodovias fechadas, saques a supermercados, incêndios em veículos peugeot e um verdadeiro caos urbano em diversas capitais. tentando reduzir os danos indiretamente causados por minha omissão, estamos de volta. haverá no futuro um texto sobre o que eu ouvi em 2023? jamais saberemos.

A imagem traz o fundo de tela de paisagem do Windows XP com os dizeres


um breve mea culpa: sempre defendi que o formato definitivo para se ouvir música é o álbum, que em sua atribuição de guarda-chuva da obra faz com que a experiência garanta sua ordem cronológica com um princípio, meio e fim bem definidos. não nego, porém, que o foco exagerado das plataformas de streaming em playlists acaba por ocasionalmente fazer com que os próprios artistas voltem seus esforços para uma agenda baseada em singles. todo mundo precisa pagar as próprias contas.

fui mordido por algum inseto desconhecido no final do ano de 2021 e o resultado disso foi que, em busca de um hábito que me permitisse observar a passagem do tempo e ter algum tipo de registro dela, criei playlists semanais ao longo de todo o ano de 2022. foram 52 playlists, criadas religiosamente toda segunda-feira, que recebiam músicas sem critério ou tema definido e entre sugestões, descobertas e obsessões acumulavam geralmente alguma quantidade entre 5 e 20 músicas. uma vez provado o ponto de que eu consigo manter um projeto como este, este é um hábito que vai ficar no passado. vamos voltar a ouvir discos e escrever sobre discos.


os últimos anos foram de uma certa transição dos gêneros musicais que escuto ao longo dos dias. saem um pouco de cena as guitarrinhas influenciadas pelo the strokes que foram o imperativo desde que eu ouvia música no meu sandisk sansa c240 enquanto esperava o ônibus e de repente a distorção virou beat. desde que me dei conta de que inevitavelmente kanye west é o starman profetizado por david bowie, ouvir rap/hip-hop se tornou natural. mas não vamos falar sobre kanye west. assunto sensível.

Don L – Roteiro pra Aïnouz (Vol. 2) (2021)

admito que cheguei atrasado e só conheci o Don L no burburinho do lançamento do RPA 2, em Novembro de 2021. talvez a falta de qualquer conceito anterior tenha reforçado o estado catatônico em que me encontrei dos primeiros segundos do álbum até a última faixa. tenho o costume de ouvir música muito mais focado na forma do que na mensagem [embora eu ache que a forma por si só também é um tipo de mensagem] e resultado disso é que nunca li e entendi a letra de músicas que canto inteiras há anos. não é o caso com RPA 2: Don L é objetivo em sua caneta e é impossível passar indiferente à narrativa impecável do álbum.

rasgar um elogio à mensagem passa longe — muito longe — de ser um demérito à forma: a presença forte de sintetizadores desde o início me conquistou sem dificuldades e as aparições pontuais e certeiras de elementos orgânicos como o solo de guitarra que fecha o álbum em trilha para uma nova trilha, que tem o toque synthpop da mahmundi pra fechar o pacote com tudo que eu gostaria de ouvir. desse ponto em diante foi natural ouvir todo o resto da obra. fica reforçado o posto ocupado pelo Don L de meu rapper favorito e de favorito do meu favorito — provavelmente.

favoritas: a todo vapor, primavera, volta da vitória, contigo pro que for, trilha pra uma nova trilha
mais: o pessoal da Inverso escreveu uma análise do álbum que é muito melhor que um post de álbuns favoritos escrito por alguém que não entende nada sobre rap. corre lá.

 

FBC & VHOOR – BAILE (2021)

quando fui em alguma festinha ainda em fevereiro do último ano e ouvi pela primeira vez se tá solteira, música que aparentemente estourou no tiktok que é um serviço que nunca usei (e juro que estar dizendo isso com o teor de quem fala eu não sei quem é gkay), minha amiga que me acompanhava me perguntou “já ouviu o álbum inteiro?” e foi justamente o que fiz. ter passado o resto do ano ouvindo o disco foi consequência. ter ouvido todos os outros álbuns do FBC foi uma consequência dessa consequência. quem chegou pelo BAILE ficou por PADRIM, por S.C.A. e por BEST DUO.

embora meu pai ouça majoritariamente rock and roll e as fitas cassette dele que estão na minha casa sejam todas do nazareth ou do black sabbath, sempre houve uma certa pluralidade de gêneros que fez com que eu tenha crescido ouvindo também kraftwerk, roberto carlos, jackson do pandeiro e mais um punhado de moda de viola, synthpop e funk melody. só quase trinta anos depois eu fui entender as influências deste último e abracei o miami bass que fez história também muito, muito longe da flórida — nos anos 90 e trinta anos mais tarde.

essas influências estão todas em BAILE que, com o devido respeito às obras anteriores, talvez seja o magnum opus de FBC, o padrim: MC, beatmaker e forte candidato a músico mais legal de belo horizonte. a parceria com VHOOR fez nascer um dos mais incríveis projetos que ouvi nos últimos anos. este é, como o anterior, mais um caso em que não consigo dissociar a forma do conteúdo porque ambos são impecáveis em pé de igualdade.

se de um lado temos um disco dançante a ponto que, das vezes que fui convidado (e foram as primeiras vezes!) para ser DJ em festas durante o último ano, em todas alguma canção do álbum estivesse presente, de outro temos uma narrativa de aplaudir de pé — mas que, dessa vez, pode passar batida aos ouvintes menos atenciosos. falo (escrevo) aqui sobre um disco com nome e sobrenome: chama-se BAILE: Uma Ópera Miami e seu subtítulo já dá a dica de para onde voltar seus ouvidos: preste atenção às letras do álbum e como elas se relacionam entre si. BAILE poderia ser um livro, poderia ser um filme, poderia ser uma série, mas para minha sorte é um álbum.

favoritas: quando o DJ toca, delírios, não dá pra explicar, de kenner
mais: ouça esse álbum pelo menos uma vez no dia.

Emicida – AmarElo (2019)

fechando a tríade de álbuns de rap que ouvi em 2022, o álbum mais antigo da lista talvez seja o que mais demorei a ouvir por conta do que talvez seja o segundo mea culpa deste texto: por alguma razão eu achava que o emicida era algo próximo desses rappers que cantam coisas como hoje ela só quer paz e outras canções feitas para virar campos de quem sou eu no orkut. talvez parte desse sentimento derive do trocadilho safado do título do álbum, mas quando venci meus preconceitos e fui escutar me apaixonei imediatamente.

não é exagero meu usar o termo me apaixonei: como um amigo muito sabiamente pontuou, é impossível ouvir o Emicida falando e não se apaixonar. não foram poucas as vezes em que nos primeiros segundos de cananéia, iguape e vila comprida eu já estava em lágrimas. AmarElo é o álbum para a esperança de um novo dia sem que nossos olhos sejam desviados e nos distraiam do presente.

haverá quem chame o rapper de vendido e outros adjetivos semelhantes por sua aproximação do pop. não ouça essas pessoas. tenho a opinião de que a régua para avaliar a coerência a supostos próprios critérios é sempre mais elevada quando aplicada a algumas pessoas e este caso não é diferente disso. ler o livro não é entender o livro.

favoritas: principia, a ordem natural das coisas, cananéia iguape e vila comprida, eminência parda
mais: este foi o melhor show que fui em 2022. se você tiver a oportunidade de ver o Emicida ao vivo, faça a si mesmo este favor.

Arctic Monkeys – The Car (2022)

se eu comecei esse texto falando que as guitarrinhas perderam espaço em minhas predileções dos últimos anos, talvez a minha banda favorita poderia ter dito a mesma coisa. há anos ensaio escrever um texto sobre tranquility base hotel & casino, meu álbum favorito do arctic monkeys, lançado em 2018. nunca saiu, mas se houvesse saído ele teria mencionado o quanto me aliviou saber que alex turner, matt helders e grande elenco não sucumbiram a uma crise de peter pan que poderia facilmente ser evocada pelo sucesso do álbum imediatamente anterior entre um público muito mais jovem que a banda. longe de ser o caso, o quarteto reduziu o BPM, sofisticou os arranjos e reforçou os conceitos, o que certamente trouxe cisão entre o público, que se encontrou numa situação de ame ou odeie. com quase 30 anos nas costas, meu grupo certamente foi o primeiro.

não é de se espantar que o hype de The Car tenha me atingido como um trem de passageiros da Estrada de Ferro Vitória a Minas. motivos não faltavam:

  • a banda antecipou que se trataria de um álbum que continuaria o caminho iniciado por tranquility base
  • o nome do álbum fala de carros
  • a capa é uma foto tirada pelo matt helders
  • os singles foram impecáveis

apresentando uma beleza inquestionável (vai questionar aí na sua casa), The Car acerta novamente ao estabelecer uma atmosfera consistente, fortemente alicerçada na presença de strings e em belíssimas melodias e arranjos, trazendo uma certa estética que alguns poderiam entender como um apagamento da banda e de suas habilidades que já foram mais que provadas nos álbuns anteriores. novamente: não ouça estas pessoas. primeiro, porque só uma maturidade musical respeitável traz o entendimento que dissocia o conceito de boa música do maior número de notas ao mesmo tempo a la guitar hero. segundo, que a própria banda já afirmou que não é problema que alex turner seja o motor criativo do grupo — na verdade, talvez seja esse o privilégio que os sustenta até hoje.

favoritas: there’d better be a mirrorball, sculptures of anything goes, body paint, mr schwartz, perfect sense
mais: como a pessoa pouquíssimo audiovisual que sou, eu não gosto de clipes, mas faça um favor a si mesmo e assista os vídeos dos singles.


Um pouco mais

Carly Rae Jepsen – The Loneliest Time (2022): meu álbum pop favorito do ano traz de volta a loira correta do pop com o que é, para mim, seu melhor lançamento desde Emotion. ouça surrender my heart, sideways, beach house e the loneliest time.

Charli XCX – CRASH (2022): eu não sei o que é hyperpop mas seja lá o que for, a Charli XCX, de quem também aprendi a gostar neste ano, é uma das maiores represententes do gênero. ouvi os demais álbuns da cantora mas pra mim é evidente que o CRASH é um outro nível de produção e escrita. ouça new shapes, constant repeat, beg for you e yuck.

Japanese Breakfast – Soft Sounds for Another Planet (2017): uma das bandas que mais gostei de conhecer em 2022 foi o Japanese Breakfast. no caso de soft sounds for another planet, o segundo álbum da banda (que não é o mais recente e nem o de mais sucesso), o match veio desde a primeira vez que ouvi. quando terminei de ouvir machinist, a terceira do álbum, precisei voltar ao começo e ouvir de novo tamanha foi a falta de ar que senti. ouça diving woman, road head, machinist e boyish.


o last.fm, a rede social favorita do jovem esquisito, publicou nessa semana o last.year, que é a versão do bem daquele compiladão do spotify com o que cada usuário mais ouviu no ano. tão do bem que nem existe um botão pra compartilhar uma imagem bonitinha no instagram. o meu tá aqui e me parece razoavelmente consistente com o que escrevi neste post, que foi tirado da minha cabeça e não de qualquer estatística.

foi um grande privilégio ver ao vivo em shows brasil afora (isto é, em vitória ou são paulo) todos os álbuns que listei na sessão principal deste post. espero continuar explorando novos artistas, gêneros e ideias neste novo ano. que a música continue sendo muito mais que ruído de fundo para trabalhar ao som da playlist deep focus ou dormir ao som da playlist peaceful guitar. nos vemos no ano que vem.

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